quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Tin Tin Por Tin Tin

Tenho em meu círculo de amizades vários aficionados em música e confesso achar raro que sejam pouquíssimos os admiradores de João Gilberto. Alguns tem aversão a qualquer tipo de música nacional, outros gostam de Chico, Caetano e quetais, mas não tem paciência para bossa nova e há os típicos moderninhos que não ouvem nada que não tenha sido feito de 1998 pra cá.

Entendo-os, de certa maneira. Ouvir João Gilberto requer uma espécie de ritual para se adentrar nas grandes qualidades da obra do baiano, que são justamente a sutileza, a riqueza de detalhes, aquela divisão rítmica toda particular, a paradoxalmente contrastante harmonia entre voz e violão, a respiração perfeita. Necessita-se de silêncio e concentração com um único enfoque e com uma única finalidade: a apreciação musical. A letra das canções, a emoção exacerbada, a contextualidade da obra, as roupas usadas pelo artista e todas essas outras características que encobrem a obra de vários talentos pelo mundo não devem ser levadas em conta ao se ouvir João Gilberto.

Ali, o quando, o onde e o porquê pouco importam. O que interessa é o como. João reinterpreta qualquer canção de uma maneira particularíssima que nem o próprio repete. E isso é dos maiores atrativos do artista. Com apenas a voz e o violão, ele poderá repetir ad infinitum uma música como “O Pato” e é muito provável que cada versão terá algum diferente mínimo detalhe, alguma sílaba levemente adiantada ou atrasada, algum acorde alongado, alguma vocalização extra.

Enfim, tudo isso já foi dito várias vezes por outros admiradores de João (mesmo na Wave já publiquei um texto sobre o disco Amoroso, de 1977). Mas repeti apenas para ilustrar com um ótimo texto alheio uma das minhas características preferidas do baiano ermitão, que é a sua incrível capacidade de respiração. O Tiago A., em texto ainda não finalizado sobre a recente apresentação em Salvador, faz uma análise sobre a forma de João cantar “Retrato em Branco e Preto”. O texto é divertido e me fez perceber que não sou o único que também realiza a brincadeira da respiração. No final, um vídeo de João Gilberto interpretando a já citada "Retrato em Branco e Preto". Leiam o texto inteiro sobre o show no blog do Tiago (publicado em duas partes, até o momento; uma terceira vem aí), vale muito a pena. Os comentários em parentêses são meus.
Vocês conhecem Retrato em Branco e Preto, de Tom Jobim e Chico Buarque:

1 Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
4 Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar tanto pior
7 O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
12 Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar
15 Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
18 Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
21 Pra lhe dizer que isso é pecado
Trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
25 Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

(Os algarismos estranhos estão aí para que, mais adiante, eu possa falar mais facilmente da maneira como João executou essa canção ao longo de sua carreira.) Conta a internet que Tom Jobim gravou a música pela primeira vez em 1965, no álbum A Certain Mr. Jobim. Nessa época ela ainda não tinha letra e se chamava "Zíngaro". Só depois, quando Tom a deu a Chico para que este fizesse a letra, é que ela passou a se chamar "Retrato em Branco e Preto". Se não estou enganado, João Gilberto a registrou em quatro de seus discos. A primeira vez foi num disco de 1976: The Best of Two Worlds, gravado ao vivo em Nova York, com Miúcha e Stan Getz. A segunda foi em estúdio; está em Amoroso, de 1977. A terceira aconteceu num show especial para a Rede Globo, que virou disco em 1980. A quarta e última vez está no disco de 1986, que registra seu show no 19º Montreux Jazz Festival.

Para falar do que torna as versões de João mais especiais que todas as outras que já ouvi, vou recorrer a um episódio auto-biográfico. Minha primeira audição dessa música na voz e no violão de João se deu na tarde do dia em que pus as mãos no disco do especial da Globo, disco que se chama João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (e esse disco ainda tem outra preciosidade: o dueto de João e Rita Lee na música "Joujoux e Balangandãs", de Lamartine Babo). Eu já tinha lido Chega de Saudade, de Ruy Castro, e já tinha topado a brincadeira que ele lá sugere: a de botar os discos de João pra tocar e tentar cantar junto com ele, karaokê-style. Durante um tempo, essa foi minha brincadeira favorita. A graça dela está em que fazer isso é bem difícil, porque João Gilberto tem um jeito especial de tomar fôlego para cantar: a reserva de ar que ele faz é tão gigantesca que ele consegue emendar um determinado verso de uma canção no verso seguinte e no outro e no outro sem precisar respirar entre eles (v. g.: João conseguiria ler esse último período em voz alta com um só fôlego e ainda assobiaria no final). Quando Ruy Castro chamou minha atenção para isso, passei a prestar atenção nos momentos em que João pegava ar, para tentar fazer igual. Depois de algumas tentativas, eu invariavelmente conseguia (aspectos como afinação e beleza nunca foram necessariamente levados em conta). Mas com "Retrato em Branco e Preto", a tarefa parecia impossível (aliás, considero que em "Águas de Março", gravada por João no seu disco de 1973, tal tarefa seja ainda mais ingrata; ele simplesmente emenda frases e frases sem parar).

Para entender o que estou tentando dizer, experimente este teste. Cante "Retrato em Branco e Preto" e preste atenção nos momentos em que você vai parar pra respirar. Cante, vá―pra ficar mais confortável, certifique-se de que ninguém está olhando. E só leia o resto depois de ter feito o teste; se não, não tem graça.

Pronto? Bem, se você for um cidadão comum, são grandes as chances de que você tenha respirado ao fim de cada verso ou que, no máximo, tenha conseguido cantar dois deles, antes de sentir a necessidade de respirar de novo. Espero que a partir de agora, depois desse pequeno exercício, você possa entender (como eu entendi quando ouvi a música pela primeira vez) a razão por que João Gilberto não é um cidadão comum. Saiba que, enquanto você e eu, em nossas execuções dessa canção, tendemos a cantar um, no máximo dois versos, parar, respirar e cantar mais um, o mínimo que João Gilberto costuma cantar é uma estrofe inteira! (Considero estrofes os trechos que aparecem entre os algarismos.) E no disco do especial da Globo, onde a ouvi pela primeira vez, ele faz o impossível. Logo na primeira execução do tema, canta do início da linha 4 até o fim da linha 10: de " Já conheço as pedras do caminho" até "E que no entanto".

Aí você diz, "Ah, isso é fácil. Basta cantar mais rápido", e eu ouço você dizer isso e te informo que João canta "Retrato em Branco e Preto" sem alterar seu andamento. Quer dizer, ele até altera, mas apenas para torná-lo ainda mais lento!
Hoje, depois de muito treino, eu até consigo acompanhá-lo nesse trecho; mas meu irmão, que há pouco estava ao meu lado enquanto eu verificava se ainda era capaz de tal façanha, disse que antes de começar a cantar essa parte, eu inspiro de uma maneira tão exagerada que pareço alguém que vai participar de uma aposta pra ver quem consegue ficar mais tempo embaixo d'água na piscina.

Fim da breve digressão.

Se você não toma cuidado, acaba viciando nessa brincadeira e não consegue mais ouvir João Gilberto sem prestar atenção nos momentos em que ele respira. Passa, então, a ter uma espécie de piada interna com ele: as outras pessoas, as que não repararam nisso ainda, ouvem a execução, e só. Você, não. Você fica recebendo uma mensagem contínua de João, em que se desvenda mais um pouco desse modo falsamente simples de fazer música, que tanto engana. Para quem ouve inadvertidamente, João aparece como alguém que não está fazendo esforço algum para cantar. Mas você, que adquiriu o hábito de enfileirar vários arquivos em mp3 da mesma canção para ouvi-los um atrás do outro, reparando nas sutilezas, nas diferenças entre uma versão e outra, você sabe precisamente o que está em jogo ali.
**********************

Nenhum comentário: